sexta-feira, 22 de maio de 2015

A canja e as suas moléculas




Canja de galinha
para 6 pessoas
1 galinha com cerca de 1,5 Kg
2 l de água
100 gr de arroz
sal
Numa panela coloque a água com o sal e a galinha deixando aquecer lentamente e tirando a espuma que se for produzindo.
Estando cozida deite o arroz e deixe-o cozer por mais vinte minutos, com a panela tapada.
Repare bem que a galinha é posta em água fria. Porquê? Fará diferença se a colocar em água quente? Há quem diga que sim, que o caldo fica mais saboroso se a puser em água fria, pois dará tempo dos seus sucos passarem para o caldo, que é como quem diz que se vão extrair mais moléculas. Mas para se comprovar, é importante fazer experiências, e sobretudo experiências bem planeadas para que os resultados tenham significado.
Hervé This fez a experiência, não com galinha, mas com carne, e as conclusões que tirou foi que quando punha a carne em água a ferver a massa da carne diminuía mais rapidamente do que num pedaço idêntico colocado em água fria (portanto inicialmente até se estavam a extrair mais componentes da carne no caso da água quente). Mas, ao fim de uma hora, os dois pedaços tinham a mesma massa. Em prova cega ninguém conseguiu distinguir um caldo do outro. Embora para uma conclusão definitiva fossem necessários estudos mais aprofundados, aparentemente obtêm-se resultados idênticos.
O que é importante é deixar cozinhar a galinha o tempo suficiente para que uma grande quantidade das suas moléculas passe para o caldo e lhe dê sabor. Mas o que vai acontecer é bem mais complexo, essas moléculas que passam para o caldo vão decompor-se e reagir umas com as outras e vão dar moléculas diferentes que enriquecem ainda mais o caldo.
Além disso, é ainda importante que o colagénio, que é o principal componente do tecido conjuntivo, e tem o papel fundamental de dar firmeza à carne (músculo), à pele e aos tendões, se altere e se dissolva na água, dando gelatina. E isto leva tempo…
Vamos perceber melhor o que se passa com o colagénio, vai ver que é interessante. O colagénio é uma proteína constituída por três cadeias em hélice, enroladas umas nas outras, formando como que uma corda. Quando se aquece colagénio acima dos 70ºC, rompem-se as ligações entre as cadeias, a hélice tripla desenrola-se – diz-se que o colagénio se desnatura – e as cadeias acabam por se separar e por se dissolver na água, formando-se aquilo a que se chama gelatina.
Certamente que já guardou canja no frigorífico e deve ter reparado que ela se transformou numa massa gelatinosa. Há pessoas que pensam que é gordura, mas são apenas proteínas que ficam dissolvidas no caldo e que dão “corpo” à canja e nos alimentam. Quando a canja arrefeceu, a gelatina “prendeu”, ou seja, formou-se um gel. As cadeias proteicas depois de separadas não voltam a enrolar-se como originalmente, mas nos seus movimentos (porque as moléculas nunca estão paradas e quanto mais calor, maior a agitação…) as moléculas aproximam-se umas das outras, e ligam-se entre si nalgumas zonas. À medida que a temperatura vai baixando, vai-lhes faltando energia para quebrarem essas ligações e acabam por formar uma rede tridimensional que retém a água – ou seja forma-se um gel.
Vamos agora ao arroz que adicionamos à canja. O arroz (Oryza sativa) é um cereal e as moléculas que o compõem são de proteínas, lípidos (gorduras),  sais minerais e água, mas as que existem em maior quantidade são mesmo as dos hidratos de carbono – cerca de 75%. Destes, grande parte é amido.  Para o nosso arroz, o ideal é mesmo o arroz carolino, dadas as características do seu amido.
Vamos então ver o que acontece ao arroz quando o cozinhamos. Fundamentalmente vamos torná-lo mais digerível (e mais saboroso, claro!). E ele fica mais digerível porque alteramos a estrutura dos seus grânulos. Quando aquecemos, a energia introduzida no sistema leva a que muitas das ligações químicas entre as moléculas de amilose e de amilopectina se quebrem e que a água consiga introduzir-se nos grânulos, fazendo-os aumentar de volume (inchar). Até parece que parte da água que estava no tacho desapareceu. 
Continuando a aquecer conseguimos mesmo que alguns grânulos rebentem e larguem principalmente amilose para a água de cozedura. Para nós, tudo se simplifica; as nossas enzimas têm dificuldade em actuar sobre um amido intacto (amido nativo), mas já lhes é mais fácil vir a degradar o amido gelatinizado, designação de um amido que foi sujeito à combinação de água e calor.
Fascinante, não é? Quem diria que tudo isto se passava na sua canja…

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